Saltar para o conteúdo

As Asas da Voz – Um Filme Palerma em 1000 palavras

Abril 25, 2012

Como uma coreografia, a borboleta traça um caminho irrequieto pelos telhados até à floreira das sardinheiras.

image

A, mulher jovem, alta, loura, descalça, caminha pela sala, apenas enrolada numa toalha branca, até à portada da varanda; entra na varanda, levanta a cabeça, fecha os olhos e saboreia o sol no rosto. A borboleta levanta voo da floreira e pousa nos cabelos de A; esta assusta-se, levanta os braços para a sacudir, desequilibra-se, deixa cair a toalha e embate na floreira.

A floreira oscila no parapeito da varanda. A, nua, tenta segurar o vaso das sardinheiras, mas este cai. Ouve-se, primeiro, o som de um embate de um objecto a desfazer-se; depois um grito.

Uma mulher, B, está deitada, de bruços, na cama; aparenta dormir. Os cabelos longos não permitem ver-lhe o rosto. Um lençol cobre-lhe metade do corpo, mas dá para perceber que está nua. Um homem, C, meia-idade, veste a camisa e abotoa as calças. Antes de sair, apanha uma pasta, olha o corpo da mulher, aproxima-se dele e dá-lhe um beijo nas costas. O homem sai do quarto. Ao chegar à rua, C olha para as mãos, tira a aliança do bolso e coloca-a nos dedos; de seguida, pega no telemóvel.

Homem.C:

Sim, querida!

Um rapaz, D, adolescente, olha o homem C do outro lado da rua ao telefone. Quando este termina o telefonema, o rapaz atravessa a rua e vai ao seu encontro. No momento em que se estão a cruzar, a floreira cai em cima de C, abatendo-o.

Uma mulher, E, mesmo ao lado de C, grita. As pessoas na rua aproximam-se, cria-se um pequeno tumulto em volta do corpo. O rapaz D aproveita a confusão, apanha a pasta de C, caída, e afasta-se em passo acelerado; na esquina esbarra com F, uma mulher pequena e gorda, quase a derruba, mas prossegue apressadamente.

Mulher.F:

Imbecil! Nem desculpa pede.

F retoma o seu caminho, olha para o grupo de pessoas à volta do corpo caído, mas não se aproxima, entra na porta de onde saiu C.

F entra no quarto, ainda a abotoar a bata, assusta-se com o facto de B estar ali deitada.

Mulher.F:

Desculpe, não sabia que ainda estava cá.

F prepara-se para sair do quarto, mas, junto à porta, olha para B deitada; acha estranho o silêncio; aproxima-se de B, abana o corpo, o lençol desliza. Vê-se uma mancha de sangue na cama. F grita.

Num muro, D abre a pasta e verifica o seu conteúdo; tira um iPhone e, na pasta dos vídeos, clica no play.

Vídeo.1:

(B fala para a câmara) Achas que estou bem? Tenho ar de Mata-Hari? Ele não pode desconfiar de nada, senão os nossos planos vão por água abaixo. Dentro em breve, o mundo vai ser nosso.

Vídeo 2:

Vê-se B e C, nus, deitados na cama, abraçados. Ouve-se um tiro. B fica imóvel, C larga o corpo e sai do plano, levantando-se da cama com um pistola na mão. C surge novamente no plano, de boxers, aproxima-se de B, vira-a de bruços e tapa-a com o lençol. A seguir, abre o roupeiro e revolve-o até encontrar um objecto, que não se percebe o que é, e coloca-o na pasta.

Uma mulher, G, com ar de executiva, desliga o telemóvel; roda na cadeira e vira-se para a mesa onde estão vários homens sentados.

Mulher.G:

Era ele; conseguiu interceptar a coisa. Houve um pequeno problema, teve que se abater um dos elementos principais da organização. Bom, sempre fica mais barato o julgamento. Finalmente o mundo está a salvo!

O rapaz D revolve a pasta roubada; encontra um frasco dourado, a lembrar um qualquer perfume. Destapa-o e cheira; faz uma careta e atira o frasco. O objecto voa e cai junto de uma paragem de autocarro, estilhaçando-se. Uma mulher, H, na paragem assusta-se. Um homem e uma outra mulher, I e J, olham, indiferentes, o objecto desfeito.

O rapaz D caminha no passeio com a pasta na mão; pára, encosta-se a uma parede, parece sentir-se mal, e começa a vomitar. Os seus olhos, escancarados, inflamam de vermelho. Alucinado, avança para o centro da rua. Ouvem-se travagens de carros. Ele abre os braços e começa a cantar a dançar.

Rapaz.D:

Every night in my dreams, I see you, I feel you.

Numa outra rua, junto à paragem de autocarro, H, I e J cantam de uma forma estridente o My Heart Will Go On. Pessoas à volta tapam os ouvidos. O som da canção parece feri-las de morte. Tombam no chão. No entanto, passado poucos segundos, levantam-se e também elas cantam a canção.

A avenida fica um caos: cada vez mais, pessoas se juntam ao grupo inicial a cantar; outras rolam no chão os primeiros sintomas antes da cantoria; os carros chocam, e de dentro deles saem passageiros também a expelir a plenos pulmões a canção. Uma espécie de musical zombie instala-se.

Pivot.de.televisão:

Celine Dionite, assim se chama o vírus que está a infectar o mundo inteiro. Basta o mero contacto auditivo e a epidemia alastra-se de uma forma aterradora. Cidades inteiras estão a ser dizimadas com pessoas a cantar My Heart Will Go On. As autoridades pedem a toda a população que permaneça em casa e com tampões nos ouvidos. Enquanto os cientistas lutam desesperadamente para descobrir uma vacina, teme-se a mutação do vírus.

Vários corpos estão estendidos numa morgue. Os corpos começam a mexer-se por debaixo dos lençóis, numa espécie de coreografia. A mulher B atira o lençol e inicia o canto em cima da bancada. Os restantes corpos, assim como os das gavetas, juntam-se ao coro.

Num cemitério, as pedras das campas começam a mexer-se. Do seu interior, saem corpos putrefactos, esqueletos, todos cantam alegremente.

Plano geral do cemitério com todos os mortos a cantar. O plano afasta-se dando o enquadramento do cemitério, depois da cidade, do território, até ficar um plano do planeta Terra.

Do universo surge o cano de uma espingarda. Uma figura, semelhante a um Deus, dispara. A Terra desfaz-se.

image

Deus:

Foda-se!

Uma borboleta pousa no ombro do tal Deus.

A propósito dos 100 anos do Titanic, resolvi tirar do baú um rascunho de uma historieta parva que fiz há mais de 10 anos – em que brincava com o efeito borboleta e o massacre auditivo -, e dar-lhe um novo corpo.

4 comentários leave one →
  1. minda permalink
    Abril 26, 2012 7:58 am

    pois…
    mas acho que Deus diria palavras piores, assim bem ao jeitinho do norte, se pusesse os olhos neste “jardim”…

  2. Maroska permalink
    Abril 30, 2012 10:16 am

    hahahaha acho que todos sofremos deste mal uma vez ou outra…

Deixe um comentário