Os açúcares das janelas do destino, mais os azeites das portas encalhadas.
Foram muitos anos de mau sexo e má literatura; só isso poderia explicar o título do seu mais recente romance – As Janelas do Amor – e que a dita obra começasse com a frase: A minha alma ficou estilhaçada, em pedaços mil, pelos ventos da paixão, naquele dia maldito em que, inocentemente, abri as janelas amordaçadas do coração.
Ela, alheia a qualquer crítica, resolveu dar o grande jantar que assinalaria o lançamento da sua mais recente pérola literária – marcar em grande estilo o seu sétimo rebento nas artes da escrita.
Pediu à sua Maria que encetasse os preparativos. Não se chamava Maria – Vanessa Lucinda era a sua graça -, mas ela insistia tratá-la assim, tal como as criadas dos seus romances, mulheres vindas da província, com sotaque acentuado, cheias de esperteza na ponta da língua e sempre detentoras de um grande segredo que espraiariam no capítulo final. A empregada, sem reclamar da adulteração de baptismo – desde que lhe pagasse no final do mês, queria lá saber da pancadas da escritora, gente fina era toda dada a manias estranhas -, executou a tarefa como lhe fora encomendada.
A elaboração do prato principal reservou-a para si, como qualquer senhora de sociedade, sabia que num jantar de eleição tinha que haver uma iguaria feita pelas mãos da anfitriã, a especialidade única que receberia, depois, os elogios de todos os convivas, ainda que, muitas vezes, mal fosse passada a portada e feitas as despedidas, comentários pouco lisonjeiros rebentassem como fogo-de-artificio em romaria.
Um a um, os convidados chegaram:
os amigos de sempre, aqueles que ainda não tinham saído do lançamento do seus livros e já lhe estavam a telefonar para dizer que a obra era o máximo e que, mais dia menos dia, havia Nobel;
o editor , sempre de mau humor, mas, ainda assim, comparecia, eram ossos do ofício, o que podia fazer, desde que a editora fora comprada por uma multinacional tinha que aceitar tudo, Proust ficaria para melhores dias;
os jornalistas certos, nada melhor do que uma boa mesa para afinar o tempero com que se cozinhavam as críticas;
um produtor de televisão – chegara o tempo de ter um programa na TV, pois toda e qualquer obra de vedeta televisiva vendia como pão quente, calor que ela começava a precisar, já que o forno das escolhas literárias andava a ficar muito lento para o seu lado.
Depois dos folhados de queijo de cabra com mel e nozes, preparados por uma Maria chamada Vanessa, foi colocado na mesa, pela mesma a quem lhe travestiram o nome – ainda que andasse sempre de bata, naquela noite colocou uniforme, alugado numa casa de disfarces, para que, assim, reencarnasse as Marias dos romances -, o prato principal.
Magnifico, excelente, soberbo, um verdadeiro poema para o nosso palato, foram alguns dos adjectivos com que brindaram os ouvidos da autora e anfitriã.
– Obrigada, é todo um prazer servir pessoas como os meus amigos – respondeu ela aos elogios. – Espero que numa próxima o deleite seja de novo imenso e eterno.
Eterno terá sido, mas não numa próxima: foi logo ali.
Overdose de açúcares em aforismos filosóficos, prolixidade aguda e, sobretudo, envenenamento pela bactéria da adjectivação – foi o diagnóstico clínico que atestou o óbito dos 9 convidados do banquete.
Apenas a anfitriã se salvou; estava imune, segundo os médicos. Bastaria uma dieta simples, acompanhada com bastante chá e ficaria normal, pronta a encetar a sua próxima obra.
Desgostosa, resolveu nunca mais experimentar aquela tarte literária feita de páginas dos seus livros; quanto muito, uma mousse dos seus artigos no jornal.
Muito bom, mordaz qb. Sobre uma análise menos à flor da pele, faço a mesma leitura do, salvo erro, penúltimo. Vasco Graça Moura dizia hoje que um dos seus livros foi escrito a partir de um conto que publicou. Interessante.
Sem querer entrar em comparações, muitos dos contos que publico são ideias para coisas maiores que, face a um conjunto de constrangimentos, acabam por ser amputados e comprimidos nestes pedaços que vou por aqui pastando.
Mas eu estava mesmo a querer entrar em comparações, mais me ajuda, como se diz na nossa terra.