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Prólogos (2)

Abril 12, 2012

Ela chegou no caminho do silêncio das tardes quentes, em hora de sesta; abriu a porta devagarinho e entrou. Ele esperava-a.

Pelas pequenas réstias de luz, que atravessavam as frinchas da janela – só disfarçando, com as portadas cerradas, o clarão abrasador que teimava incendiar a paisagem lá fora é que se conseguia saborear a sesta –, ele adivinhou-lhe os contornos do corpo; vinha nua, como nos filmes. O tempo já lhe enchia um pouco as linhas, mas, ainda assim, ele viu-a moça, como se ela viesse directamente dos dias em que soltava juventude pela casa toda e o atiçava com olhares atrevidos. Sentiu desejo, muito; de repente, como por feitiço, as suas carnes, outrora definhadas de velhice, ganharam alma e emergiram num calor devorador.

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Ela avançou e, sem pedir licença, escarranchou-se sobre a cintura dele. Ele nada fez para a impedir, deixou que ela lhe puxasse as cuecas para baixo – única peça que deixava vestida para descansar – e se aconchegasse melhor em si. Não sabia se Deus aprovaria aquilo – provavelmente ralhar-lhe-ia um dia, quando ajustassem contas –, mas a língua do povo, essa sim, iria crucificá-lo para sempre que nem Cristo na Paixão; afinal, até era de paixão que se tratava.

Como mulher mestra das artes da volúpia – que não o era, pelo menos assim pensava ele –, encaixou-o dentro de si num gesto único repentino, a fazer lembrar estocada de arena. Os seus cabelos caídos, sempre descompostos, faziam, no momento, um alinho melódico de gestos soltos no ar ao ritmo de cada movimento arrebatado que ela proferia sobre o corpo dele – ainda há pouco a morrer um sono leve, agora quase a desfazer-se em deleite.

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Para abrandar o ritmo, ela debruçou-se, roçou-lhe com os bicos dos seios nos raros pêlos brancos do peito dele – que por pouco não se abriu para deixar explodir um coração afogueado no limite – e agarrou-lhe a cabeça. Quando os lábios dela estavam prestes a devorar a sua boca – ele ainda sentiu um calor húmido a tocá-lo -, desviaram-se para uma outra parte mais ao lado, umas orelhas a derreterem-se com a pré-sensação de irem ser beijadas, e, em jeito de sussurro, libertaram:

– Vou matar-te; de prazer!

Mais do que o cio das palavras, foram as facas do destino que escutou. Há muito que ele sabia que semelhante encontro tinha que acontecer, numa espécie de ajuste de contas com os caminhos que escolhera lá atrás. Ao contrário do que dizia o povo, não havia maldições, apenas escolhas; ele não só fizera, em tempos, as suas, como também as alimentara no seu próprio ninho. Restava-lhe voar após a estocada final.

Falso Conto; Prólogo (e um pouco mais) do romance Cria Corvos.

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